domingo, 13 de fevereiro de 2011

Primeiro olhar

Olhei atentamente a pessoa que se encontrava a minha frente. Impossível não notá-la! A diversidade de cores num só ser chegava a ser agressiva aos olhos. Era chamativo demais, carregado demais e irradiava dos dedos dos pés ao último fio de cabelo da cabeça. E que cabelo! Ele era o primeiro a prender a atenção dos observantes alheios, afinal, ninguém nasce com cabelo azul. Mas ele não era apenas azul, era berrante, escorrido até a cintura num corte reto e com franja. Fazia um grande contraste com a pele clara e acetinada da, digamos assim, sua proprietária. Para ser sincera, não havia nada que não entrasse em choque naquela criatura: trajava uma blusa amarela de mangas compridas extremamente justa ao corpo; uma saia verde de bolinhas alaranjadas até o joelho, levemente avolumada por uma armação de tule branca que poderia ser vista abaixo do joelho; um cinto fino cor de rosa no meio da cintura; uma meia calça xadrez vermelha e um salto alto violeta. Sem falar do enorme girassol preso no pescoço por uma fita branca de cetim. Era uma completa descombinação! Pobres sábios da moda enfartariam ao vê-la.

Continuei a avaliá-la minuciosamente. Foi quando, por fim, a encarei. Ela não sorria, mas tinha um ar de curiosidade nos olhos azuis. Seu rosto trazia maçãs avermelhadas, pálidas se comparadas a cor de seu batom. Os olhos eram contornados de preto, tanto na parte inferior quanto na parte superior, que também trazia o alaranjado em suas pálpebras. As sobrancelhas eram bem definidas e os cílios longos mais pareciam uma vassoura a varrer. Eu não sabia para onde olhar. Me senti um tanto incomodada com aquela situação. Mirei novamente o rosto da garota, encontrando desta vez espanto. Olhei em volta e vi que algumas pessoas também a olhavam e algumas até murmuravam entre si coisas inaudíveis, mas que eu tinha certeza de serem as mesmas que passaram por minha mente.

Voltei-me para a garota e a encontrei sorrindo. Não de felicidade, mas de satisfação. Uma certeza de dever cumprido. E realmente estava. Quem olhasse para ela ficaria sem entender. Os leigos logo a julgariam exibida, alguém que apenas buscava chamar a atenção; os mais, por assim dizer, inteligentes, encontrariam um conflito externo, que certamente refletia o interior. Estes, por sua vez, estariam parcialmente certos, já que o conflito de fato existia. Porém, não saberiam o porquê e assim sendo, não haveria mais chances de acertos. Estava livre. Livre de si, livre dos outros, livre do passado. Um caminho se abria a sua frente com muito menos dor.

Deixei as reflexões de lado, olhando minha imagem refletida no espelho. Aquela era eu: a nova Maria Flor da Cunha. Embora eu não me reconhecesse, ainda que estivesse com os mesmos traços de antes, teria de aprender a conviver com esse meu novo eu, não só exterior mais muito mais interior. Teria de suportar os olhares julgadores, as gozações, os apelidos... E calaria cada qual, levando assim minha meta em diante. Ainda era cedo, o dia estava só começando, então era chegada à hora de eu deixar aquele salão de beleza e ir para casa. Ir para minha nova vida.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

(In)sensato coração

Laura, 18 anos, alta, morena e divertida.

Era assim que eu sempre me descrevia nos chats. Não que tudo fosse verdade. A começar pelo meu nome. Eu me chamo Ana, sou morena, estatura mediana, não sou tão divertida assim e naquela época eu tinha 17 anos. Adorava gastar meu tempo conhecendo pessoas novas no mundo virtual, tudo aquilo me fascinava, afinal era uma típica adolescente. Mas o que realmente estava por trás era o sonho de toda garota: encontrar o homem perfeito. Até que um dia ele apareceu. Se identificou como o surfista solitário. Conversamos durante horas, e no dia seguinte também, e no seguinte, e no outro...

Era mês de agosto e o inverno daquele ano havia sido rigoroso. Muita chuva, muito frio... E assim eu e o tal surfista gastávamos nossos dias em longas conversas pela internet. Ele era divertido, inteligente, tínhamos a mesma idade e as mesmas idéias. A cada dia ele me encantava mais.

Setembro passou como um vento forte, desconcertando meu coração e levando para longe de mim a razão. Eu sabia que era tolice, mas eu já estava apaixonada por um cara que poderia muito bem não existir.

Outubro chegou e então começamos a ter conversas de vídeo. Nessa época ele já sabia que eu era Ana e eu já sabia que ele era Gabriel; já trocávamos e-mails diários, assim como torpedos e telefonemas. Ele era exatamente como eu sempre sonhei: romântico, inteligente, divertido e lindo. Sim, ele era lindo: moreno claro, olhos negros com um sorriso fascinante.
Em contra partida, eu já não tinha uma vida social. Meus amigos já nem me ligavam mais e minhas amigas já haviam se cansado de tanto ouvir falar desse meu amor platônico. Mas naquele tempo isso pouco me importava, tanto fazia o que todos falavam, eu já havia me rendido a paixão.

Quando chegou novembro, por medida de segurança, meus pais cortaram a internet e me proibiram de falar com Gabriel. Besteira! Eles achavam que era perigoso demais e temiam que algo ruim acontecesse. Era lógico que não! Jamais o Gabriel me faria mal. Ele me amava tanto quando eu o amava. Mesmo sem internet, continuamos nos falando. Quando ele não telefonava, eu o fazia. Escondida, claro! E assim meu amor crescia a cada dia mais...

E assim chegou dezembro. Verão, sol e mar. Meu pobre coração já não suportava mais a espera, então decidi ir para Garopaba encontrar o amor da minha vida. Como eu sabia que ele morava lá? Eu não sabia onde ele morava, mas sabia onde ele adorava pegar onda. Ele sempre me dizia que era o melhor lugar, pois era lindo e combinada a extensa faixa de areia com as fortes ondas do mar. Para não ser impedida não avisei ninguém que eu estava indo, nem mesmo o Gabriel, simplesmente fui. Era uma sexta-feira a tarde abafada em Joinville, coloquei algumas roupas na mochila junto com o pouco dinheiro que havia economizado e então fui à busca do meu amor. Porém, a viagem demorou mais do que o esperado. Devido a um acidente na estrada demorei o dobro do tempo para chegar e assim, como já era noite, resolvi dormir numa pousada e esperar o sábado chegar. Com o celular sem bateria e com o pouco dinheiro que me restou, assim que amanheceu fui para a praia, pois sabia exatamente onde encontrar o tão esperado homem dos meus sonhos e a ansiedade já me consumia.
Não foi difícil encontra-lo. Difícil foi suportar o que eu vi: ele, lindo e majestoso, saindo do mar e indo ao encontro de uma loira sentada na areia. Meu mundo desmoronou quando ele a beijou. Pobre coração tolo, ingênuo, que se deixou levar... Só me restava juntar os pedacinhos e voltar para minha vida vazia e, a partir de então, amargurada. Olhei uma última vez para aquele cretino, safado, sem vergonha, jurando para mim mesma jamais me deixar enganar novamente. Sai dali direto para a rodoviária, porém o destino não estava sendo generoso comigo e o próximo ônibus para Joinville só saia às 13h e ainda eram 10h. Enquanto aguardava, em meio ao choro, frustrada e desiludida, o que passava na televisão me chamou a atenção: um casal de meia idade, aflito, pedindo ajuda para encontrar a filha desaparecida. A mulher chorava enquanto se desculpava por pensar não ser uma boa mãe. Mas ela era. Era a melhor mãe do mundo! Ver meus pais desesperados por uma inconseqüência minha só estraçalhou meu coração ainda mais. Encontrei um orelhão e liguei para casa a cobrar. A única coisa que eu consegui dizer, aos prantos, foi: “Estou bem... Estou voltando”.



Hoje com 22 anos me lembro disto e dou boas gargalhadas. Assim que voltei para casa tive que ouvir, calada, muitos “Eu disse”, “Não falei?”, “Eu te avisei que isso não iria dar certo!”. Mas como eu poderia mandar em meu insensato coração? Como eu poderia controlar um sentimento tão nobre?
Logo após aquela insanidade fiquei bom tempo isolada do mundo, pensando na loucura que havia feito. Mas toda história ruim tem seu lado bom. Amadureci muito com tudo isto. Entrei para a faculdade e lá conheci Henrique, meu atual namorado. Ele não se encaixa nos padrões gerais de perfeição, mas eu não ligo, pois o amo mesmo assim. Ele é perfeito para mim. Não sei dizer se ele é o amor da minha vida, muito menos se isso vai durar para sempre. Mas tenho certeza que ele é o amor do meu ontem, do meu hoje e o que eu mais desejo é que tudo isso seja eterno enquanto dure.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Querer

Quero um amor simples:
Um dengo, um chamego, um sentimento.

Quero um amor simples e felicidade por inteiro:
Um abraço apertado, um sorriso verdadeiro, olhos transbordando alegria.

Quero... Não quero complicações!
Sem questionamentos e sem preocupações.

Quero um amor simples, felicidade por inteiro e sem complicações:
Amor feito de um ciumezinho gostoso, de telefonemas fora de hora, de sensações... De silêncio.
Na verdade, sentimento é muito mais completo com olhares e silêncio!
Pronto: Quero sorrisos, olhares e silêncios!
Quero não, quero sim
Não! Eu quero você!

Não me peças para ficar, muito menos para ir
Sequer se preocupe em me entender.
Apenas saiba que eu quero tudo, quero nada
Que eu te amo
E isto me basta.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Susto

Estamos na primavera e o dia amanheceu ensolarado, porém não faz calor. Há um parque de diversões na cidade e prometi para minha irmã que a levaria para brincar. Então, logo cedo, meu namorado, minha irmã e eu saímos de casa.

Como já era de se esperar, há filas imensas para todos os brinquedos, afinal hoje é domingo. Enquanto meu namorado compra os tickets, eu e minha irmã compramos guloseimas e acabamos de encontrar dois casais de amigos que se juntaram a nós.

Já estamos há duas horas no parque e fomos à roda gigante e ao barco viking apenas, sendo que este último me deixou realmente enjoada. Já são quase onze horas da manhã e estamos numa fila gigantesca para ir à montanha-russa.

- Amor, podíamos dar uma volta no shopping. – Disse Henrique, meu namorado.

- Depois que a gente for à montanha-russa, podemos ir lá e aproveitamos para comer alguma coisa. Eu respondi.

- Hum... Mas essa fila tá tão grande. Poderíamos ir agora... O shopping é aqui do lado.

- Boa idéia, to querendo dar uma olhada em alguns tênis... - disse Luciano, um dos amigos que estavam conosco.

- Ana, eu só saio daqui depois de ir à montanha-russa! – reclamou minha irmã, de sete anos.

- Então vão vocês dois, e eu fico aqui. Não posso deixar a Júlia sozinha. – Eu respondi, embora precisasse tomar um ar, pois certamente meu estômago não aguentaria tamanha adrenalina.

- Eu também vou – respondeu Rita, a namorada do Luciano.

- Pode ir Ana, a gente vai ficar. Cuidamos da Júlia. – Disse Marina, namorada do Fernando, o outro casal que estava conosco.

- Tudo bem Júlia? - Perguntei.

- Só se você me trouxer um algodão doce rosa. – Ela disse, abrindo aquele sorriso de sapeca.

- Eu prometo. – respondi. E então nós fomos.

Entramos no shopping, olhamos algumas vitrines até que o Henrique e o Luciano resolveram entrar numa loja de esportes, que ficava no segundo piso. Enquanto eles tagarelavam, eu me perdi olhando a bela vista. A loja tinha uma vitrine, a qual era voltada para o lado noroeste e permitia ver do parque de diversões até o aeroporto que estava a uns 3km dali. Era simplesmente maravilhoso!

- Ana, o que tu acha desse tênis?

Meu namorado tinha gostado de um modelo e queria comprá-lo.

- Bonito. Respondi sorrindo.

Então ele provou e resolveu levar. O casal que esta conosco havia ido à outra loja e nos encontrariam depois.

Enquanto aguardávamos na fila do caixa, que ficava ao lado da vitrine, a qual a vista me encantou, meu namorado me trouxe para mais perto passando seu braço pela minha cintura. Ele começou a me falar alguma coisa que eu não prestei atenção. Enquanto ele olhava para mim, eu olhava por além da vitrine. Havia um avião no aeroporto, mas alguma coisa de errado estava acontecendo. Ao invés de decolar normalmente, ele levantou vôo como um helicóptero, apenas distanciando-se do chão. E então começou a zigue-zaguear, no mesmo lugar, com a cabine apontando para o chão, inclinando assim o avião num âme encantouestoois de m a nós. sapeca.e estava conosco.

ngulo de aproximadamente 45º. A aeronave fazia movimentos bruscos e rápidos. Era como se ela estivesse magnetizada e algo a estivesse controlando do lado de fora...

- Ana? - Meu namorado chamou. Eu não conseguia tirar os olhos do que estava acontecendo, apenas disse:

- Amor, olha... - E indiquei com a cabeça o que eu estava olhando. Assim que ele se virou, um barulho muito alto rompeu o murmúrio das conversas e o avião começou a se aproximar. Era como se o cabo invisível que o prendia houvesse se rompido e, assim, o arremessado a uma boa distância.

- CORRE! Meu namorado gritou, puxando-me para fora dali.

Gritos irromperam e então o caos se instalou. Algumas pessoas que estavam na loja e viram o acontecido saíram gritando: “SAIAM DAQUI! PERIGO”.

Todos queriam sair dali o mais rápido possível, e até mesmo aqueles que não entendiam o porquê da euforia, procuraram à saída mais próxima.

Quando então chegamos à calçada, vi a traseira do avião sobre nós, que num rodopio destruiu parte do terceiro andar e ainda assim, dirigir-se para algo além. Pedaços da aeronave e do prédio começaram a cair, quando vi uma mulher se jogar do segundo andar para não ser atingida por uma coluna de concreto. Em meio a toda aquela agitação, eu então me lembrei:

- A JÚLIA!

Henrique arregalou os olhos para mim e disse:

- Vamos.

Corremos em direção ao parque e eu só conseguia pensar no pior: a massa de ar deslocada pelo avião provavelmente teria derrubado todos os brinquedos que estivessem na altura e se ela estivesse na montanha-russa, bom... Aí não teria sobrevivido para me relatar a tão esperada experiência. Fiquei horrorizada com tudo isso!

Quando chegamos ao parque, o que eu temia havia acontecido: tudo estava no chão. Vi sangue por toda parte, gente desesperada, outros sem vida... Então chorei enlouquecidamente e fui à procura de minha irmã.

Nos dirigimos para onde estava a fila da montanha-russa. Procuramos, mas não a encontramos. Nem ela, nem a Marina, nem o Fernando. Se eles não estavam ali, só poderiam estar no brinquedo. Henrique me abraçou e eu desabei em lágrimas. Eu não queria saber onde o avião havia parado, nem porque aquilo tinha acontecido... Eu só queria saber onde minha irmãzinha estava... Henrique me tirou daquela multidão e me levou para o carro.

- A gente tem que esperar o socorro, calma...

Ele insistia, mas eu via o desespero nos olhos dele. Então, meu celular tocou.

- É o número da Marina – falei – Alô? Marina, onde vocês estão? O que aconteceu? – então desabei em choro. Henrique arrancou o celular da minha mão e quis descobrir o que havia acontecido.

- Oi, Marina? ... – Não era a marina. Era a minha irmã sã e salva. Quando eu atendi ao telefone ela disse: “Oi mana, eu tô com fome, você vai demorar muito?”

Dez minutos depois, eu estava abraçando-a, e Marina e Fernando estavam conosco. Eles estavam no banheiro quando tudo aconteceu.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Dentro do diário

O diário, dentro da gaveta do criado-mudo ao lado da cama.
Escrito em meia página com caneta rosa, às 3h16min da manhã de uma quarta-feira:


Eu já tinha me sentido assim uma vez antes, uma única vez. Mas fora uma lembrança tão cheia de dor que resolvi não pensar mais. Apenas sentir minha pulsação aumentar, minha respiração falhar e um bem-estar incomum.
Mesmo eu tentando me esconder, querendo ser uma aberração, ele me via com outros olhos. Em meio a tantas pessoas ele era o único que me enxergava de fato. Será que devo confiar? Já me decepcionei tanto... Já acreditei em quem não merecia... Não é possível que todos sejam iguais! E o Lucas... Ah, ele não me parece mais um garoto qualquer. Ele tem algo que eu não consigo explicar, mas que, definitivamente, me encanta.

Flor

terça-feira, 30 de março de 2010

Contradição

O relógio soou às 6h30min, como todos os dias. Levantei-me, abri as cortinas e vi uns fracos raios de sol. Hoje o dia seria bonito. Abri a janela e deixei o ar da manhã entrar. Era abafado e com pouca umidade. Hoje também seria um dia quente. Fui até meu guarda roupa, peguei meu vestido verde, meu lenço laranja e fui para o banho. Depois de vestida fui fazer meu chá. Enquanto a água foi pegando o aroma, sequei meu cabelo. Não me demorei. Voltei para a cozinha, arrumei a mesa e resolvi ir à padaria, mas antes eu precisava me maquiar e foi o que fiz. Corretivo, pó, sombra laranjada, lápis, rímel, delineador e blush. Exclui do meu rito diário o batom. Não havia necessidade passá-lo agora se em seguida eu teria de tirá-lo para passar novamente mais tarde. Então desci. Fui à padaria, que ficava na mesma quadra de meu prédio, comprei pão francês e pães de queijo fresquinhos. Percebi que seria um dia daqueles, pois observando o trajeto vi que as pessoas estavam mais agitadas. Associei isso ao calor, o que era bom. Por outro lado, porém, a temperatura poderia subir demais no racional humano, causando ebulição, ou seja: impaciência.
Tomei meu café, ajeitei as louças da pia, fiz minha cama, peguei meu material e fui para o colégio. Já passava das 7h15min quando sai, mas meu destino estava há quatro quarteirões dali, antes das 7h30min eu estaria lá, então tudo bem.
Como previa não me atrasei. Mas ao chegar fui direto para a sala, para evitar comentários. Ou melhor, para evitar ouvi-los. Toda aquela implicância já estava me cansando.
- Oi, Flor.
- Bom dia Laura. – Ela era uma das únicas pessoas que me dirigia a palavra decentemente. Era uma garota reservada, inteligente... Me parecia legal e eu realmente simpatizava com ela. Não conversávamos muito. Quando o fazíamos era para tratar sobre algo do curso. Ela não era impertinente e eu admirava sua discrição.
A manhã passou ligeira, submersa em cálculos até o intervalo. Assim que o sinal tocou, fui comprar uma água. A fila estava razoavelmente grande e eu resolvi aguardar.
- Já ganhei essa. Duvido que ele vá cumprir a aposta... – Em meio aos ruídos isso me chamou a atenção. Risos vinham de uma mesa a minha esquerda, um pouco atrás de mim. Passei a mão no cabelo, teatralmente e me permiti olhar para saber de quem se tratava. O grupo não me era estranho, mas como eu evitava a companhia e o contato com as demais pessoas, seus nomes eram detalhes que eu não fazia questão de saber. – Beijar aquela aberração? Eu pago pra ver! – Beijar? Que história ridícula é essa?
- Não sei não, hein. O Lucas não ia jogar dinheiro fora assim... Tem que ser muito louco mesmo. – Mais risos vieram daquela mesa infestada de hipócritas. Eu estava ficando louca ou isso tinha a ver comigo. Não havia ninguém no colégio conhecido por aberração, não além de mim. – E aí Lucão, vai querer pagar agora ou depois? – Era minha vez no caixa então não pude ouvir a resposta. Apostaram um beijo. Quanta infantilidade! Ao sair, passei pela mesa cheia de corpos grandes e definidos que possuíam cabeças vazias. – Até que ela é bonitinha... Se tu olhar bem de longe! – Sai do refeitório ainda ouvindo as zombarias e fui em busca de um lugar ao sol. O dia estava agradável demais para eu me incomodar com seres tão inúteis. Sentei num banco, próximo a uma árvore e permaneci ali durante os 10min restantes, absorvendo os raios solares e deixando minha mente vagar, vazia, para encarar o restante da manhã com mais cálculos. As aulas que seguiram foram repletas de símbolos químicos e números atômicos que em um piscar de olhos fizeram o tempo se esvair. Quando o sinal final tocou, demorei um pouco até guardar meu material e sair. Ao descer a escadaria fui surpreendida. Não deveria, já que a conversa que ouvi no intervalo me deixara de sobreaviso. Penso que a surpresa foi pelo tal Lucas ter coragem, depois de tanta zombaria, de me esperar. Pela expressão em seu rosto parecia estar pensando em como faria para ganhar a aposta. Assim que passei por ele, ele me seguiu. Me acompanhou alguns passos em silêncio antes de dizer o que queria.
- Oi, eu sou...
- Lucas, suponho. – Ele parou por um instante, mas logo se recompôs, caminhando a meu lado.
- Sim... E você é Flor.
- Exato. – Estávamos na calçada que levava ao estacionamento, então pude ver o bando de idiotas que eram seus amigos, reunidos próximo a um fiesta grafite, nos olhando curiosamente.
- Então Flor... – Parei a sombra de uma árvore e girei-me para olhá-lo. Ele parou também.
- Quanto é?
- Quanto? Quanto é o quê? – Ao olhá-lo de frente vi algo diferente. Ele não era lindo. Era bonito, mas nada sobrenatural. Tinha olhos azuis que eram, sim, maravilhosos. Sua pele era do mesmo tom que a minha. O cabelo escuro estava (des)arrumado num moicano. Tinha um certo charme.
- A aposta, de quanto é?
- Que... Que aposta? – A surpresa era óbvia: ele não sabia que eu sabia. Nem sequer suspeitava disso.
- Quanto é que aqueles – otários – seus amigos vão pagar pra tu me beijar? – Ele não respondeu – Não precisa fingir. Eu ouvi a conversa mais cedo.
- Poxa, eu...
-Sem rodeios, ok?! Quanto?
- Cinqüenta reais.
- Nada mal... Beijo mesmo ou selinho?
- Eu não sei... – A expressão em seu rosto era muito hilária. Ele parecia dopado pelo choque e não reagia direito. Não consegui segurar o riso.
- Que foi?
- Sua cara...
- Que é que tem?
- Ta estranha... Parece assustado.
- Não! Eu só...
- Não esperava que eu soubesse – Conclui.
- É, isso.
- Posso não ser comum, mas não sou cega. Muito menos surda.
- Desculpe por isso. – Ele parecia sincero. Se não por realmente lamentar pela aposta, mas por eu ter descoberto. Passou por mim e seguiu em direção a seus amigos.
- Onde tu vai?
- Pagar a aposta.
- Como assim? Tu nem tentou... – Só o que me faltava mesmo, um molenga.
- Nem tenho cara pra fazer isso agora.
- Só porque eu descobri. Se não, tenho certeza que não se envergonharia disso. – Ele continuou a andar, sem me dar atenção. – Ei, Lucas. Relaxa. Também não é o fim do mundo. – Ele então parou, virou-se pra me olhar, lançando-me um olhar curioso.
- Não liga que eu te beije pra ganhar uma aposta?
- Claro que eu ligo. Acho isso uma tremenda infantilidade. É por isso que depois que tu for buscar o prêmio, vai me dar metade. – Dei-lhe uma piscadela e ele riu.
- Você é louca.
- Eu diria prática. E então, com batom ou sem? – Ele riu, mas eu tinha que perguntar. Não são todos que gostam de batom vermelho.
- Não acho que gostaria de usar batom. Ainda mais assim, discreto – Revirei os olhos. Fora como imaginei. Peguei em minha bolsa um lenço e removi o batom. Estava mais silencioso agora, a maioria das pessoas já tinha ido embora.
- Vou querer 60% do prêmio por ter este trabalho.
- Não mesmo, você perguntou e eu respondi. Não exigi nada.
- Bom saber. – Revirei minha bolsa. Tirei o batom e o espelho.
- O que você vai fazer? – Ele me olhava incrédulo.
- Passar batom... Já que não faz diferença. – Ele segurou minhas mãos e então eu me encolhi. Fazia muito tempo que alguém não invadia ‘minha área’.
- Deixa de besteira. Vamos acabar logo com isso.
- 60%?
- Ta, tudo bem. – sorri e guardei meus acessórios. Ele não parecia mais tão idiota, embora eu ainda concordasse que a aposta era o cumulo da infantilidade. Pelo menos tinha seu lado bom: eu ganharia trinta reais sem o menor esforço. Ficamos em silêncio por um longo momento. Eu o fitando e ele perdido em pensamentos. Comecei a ficar impaciente. Era só um maldito beijo, sem importância, para calar a boca daqueles otários. Por que ele tinha que demorar tanto?
- Lucas, - ele encontrou meu olhar e então comecei a tagarelar – vai demorar muito? Se não posso ir almoçar e... – Seu súbito movimento me calou. Ele enroscou uma mão em minha cintura, levando-me para perto dele, e a outra sustentou em minha nuca. Minha reação foi por reflexo. Meus braços, que agora estavam em seu peito, lutavam para me afastar, empurrando-o. Mas estávamos próximos demais, sua respiração tocando meu rosto. Pude ver o desenho perfeito de sua boca. Era só um beijo, eu não tinha que revidar e também não precisava ficar sem ar como acontecia agora. Parei os movimentos dos braços e ele me beijou. Relaxei um pouco, lançando minhas mãos por suas costas, para mantê-lo ali. Fora um beijo... Tenso. Ambos estávamos fazendo aquilo não por vontade própria, mas por causa de um bando de idiotas. Droga! Como não me dei conta disto antes?! O que há tanto eu evitava e até desprezava tinha acontecido comigo mesmo. Tola! Libertei-me de seus braços, finalizando o beijo que a meu parecer já tinha sido longo demais. Mas ele foi inflexível. O beijo agora tinha mais urgência e seus braços insistiam em me manter ali. Senti borboletas voarem em meu estomago. Aquilo já estava indo longe demais. Empurrei meus braços contra seu peito até conseguir afastá-lo.
- Pronto! Aposta ganha – Endireitei-me e olhei para seus amigos. Todos nos olhavam, boquiabertos expressando certo... Nojo?! – Hipócritas!
- Desculpe... Por eles.
- Tudo bem, eu supero. – Sai louca de vontade de chegar em casa.
- Flor... Obrigada. – Não me virei, apenas ergui minha mão direita, fazendo um sinal de ‘beleza’. Mesmo longe ainda pude ouvi seu riso baixo.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

(Des) Encontro

Sai do trabalho exausto. Fora um dia cansativo, penso eu que principalmente, devido ao calor – Seria ótimo se o condicionador de ar estivesse funcionando no escritório e se meu chefe não fosse tão mão de vaca para mandar consertar. Quando cheguei ao terminal central, fiquei esperando meu ônibus. Não percebi muita coisa. Minha cabeça estava longe dali, pensando na hora em que eu chegaria em casa e desabaria sob minha cama...
Eu já estava quase pescando quando meu ônibus chegou. Esperei ao lado da porta, até que o aglomero de gente saísse para que eu pudesse entrar. Fiquei de cabeça baixa, vendo os pés apressados passarem por mim. E foi então, quando o fluxo diminuiu, que ergui a cabeça e a vi diante de mim. Ela estava linda! Levemente maquiada, os cabelos soltos... Linda como sempre foi! Fiquei olhando-a, esperando que ela virasse para mim. Mas não aconteceu. Ela passou diante meus olhos rapidamente, e eu a segui, girando a cabeça para olhar, mas ela logo entrou na multidão e desapareceu. Queira Deus que ela realmente não tenha me visto.


Eu estava atrasada para uma consulta. Com o carro no mecânico, tive que optar pelo transporte coletivo - “busão”. Eu odiava fazer aquilo. A demora para chegar a algum lugar; o efeito “lata de sardinha”; e todas as demais implicações me tiravam do sério. Mas não estava ali por gostar, mas por ser necessário. Sendo assim, coloquei meus fones de ouvido e me desconectei do mundo durante o trajeto. Deixar minha mente vagando ao som de uma boa música era a única coisa que eu podia fazer.
Como eu já estava atrasada mesmo, deixei que a maioria das pessoas saísse antes de me levantar. Não estava a fim de ser espremida numa multidão e nem com humor para isso também. Quando cheguei à porta, reconheci de imediato a figura que estava a minha frente. Ele não mudara desde a última vez que nos vimos e isso não acalmou meu coração. Logo a imagem de seu iluminado sorriso apareceu em minha mente. Então, notei o leve movimento de sua cabeça. Estremeci. Olhei fixamente em outra direção, fingindo não vê-lo. Sai apressada pela porta e me enfiei na multidão. Por minha visão periférica notei quando ele virou a cabeça, me seguindo com o olhar. Não exitei. Seria melhor ele pensar que eu não o tivesse visto. Eu não saberia o que esperar se por acaso seu doce olhar encontrasse o meu.